15 setembro 2014

SUSTENTABILIDADE URBANA - SIGNIFICADOS E MEDIDAS

Sustentabilidade urbana: significado e medidas
 
A idéia de sustentabilidade urbana é uma ferramenta poderosa na aproximação das temáticas ambiental e urbana, a qual se consolidou ao longo da década de 90. A oposição entre o ambiental e o urbano, o primeiro visto como pertencente ao reino do natural e o segundo como a expressão do não-natural, dominou o pensamento ambientalista em seus primórdios. Se nas raízes do ambientalismo e em suas vertentes preservacionista e conservacionista abre-se um enorme ponto cego em relação à questão urbana (Costa, 1995), a mudança de enfoque na definição da questão ambiental em direção à sustentabilidade nos anos 80 permitiu uma aproximação das temáticas.
 
A idéia de sustentabilidade urbana é uma ferramenta poderosa na aproximação das temáticas ambiental e urbana
Sustentabilidade urbana



Temas como desenvolvimento urbano, controle da poluição atmosférica e hídrica nas cidades, utilização sustentável de recursos naturais e conservação de espaços verdes no interior dos espaços urbanos tiveram forte presença na agenda das principais organizações multilaterais voltadas para o desenvolvimento e para a questão urbana nos anos 90, bem como em seus critérios para aprovação de projetos e concessão de financiamentos (UNCHS, 1988; The World Bank, 1991; United Nations, 1992; UNDP, 1992; UNDP/UNCHS/The World Bank, 1994).


No caso das Conferências Internacionais, é sintomática a inclusão da questão ambiental no espaço urbano como um dos cinco grandes temas do Hábitat II (conferência internacional da ONU sobre as cidades), bem como a inclusão das temáticas cidades e poder local entre as principais questões discutidos na Rio 92 (conferência internacional da ONU sobre meio ambiente e desenvolvimento) e sistematizados na Agenda 21.


Recentemente, o Millennium Ecosystem Assessment, ou Avaliação Ecossistêmica do Milênio , incluiu o sistema urbano entre as 10 categorias de sistemas utilizadas para apresentar seus resultados (Millennium Ecosystem Assessment, 2005).


A Agenda 21 Brasileira elegeu o tema cidades sustentáveis como um dos seis pilares sobre os quais se sustenta a construção da sustentabilidade ambiental, social e econômica do país (Novaes, 2000).


Como foi enunciado, a idéia de sustentabilidade urbana corporifica a convergência entre o ambiental e o urbano. Mas, a despeito da crescente importância e amplo uso do conceito, este está longe de possuir significado consensual. Segundo Ferreira (1998: 59), “o conceito torna-se um ponto de referência obrigatório dos debates acadêmicos, políticos e culturais; na verdade, passa a ser uma idéia poderosa, sobre a ordem social desejável e um campo de batalha simbólico sobre o significado desse ideal normativo”.

O que há subjacente às diversas versões do que seria o desenvolvimento sustentável urbano é uma disputa pelo estabelecimento da “verdade” no que tange a esse conceito. Verdade entre aspas, pois esta nunca é absoluta, é sempre socialmente construída através de uma disputa de poder. Segundo Foucault (1996:13) os discursos em si não são verdadeiros ou falsos, o que existe é “um combate pela verdade [...] pelo conjunto das regras segundo as quais se distingue o verdadeiro do falso e se atribui ao verdadeiro efeitos específicos de poder”. Para Bourdieu (1996: 127), “quando se trata do mundo social, as palavras criam as coisas, já que criam o consenso sobre a existência e o sentido das coisas, o senso comum”. Nesse contexto, “se existe uma verdade, é que a verdade é um lugar de lutas”.


Ao aplicar esta discussão à questão da sustentabilidade urbana, Acselrad (1999) alerta que a forma pela qual se articulam conceitos e se constroem matrizes discursivas que articulam as questões ambiental e urbana fazem parte de um jogo de poder em torno da apropriação do território e de seus recursos, que têm por objetivo legitimar ou deslegitimar discursos e práticas sociais. Partindo daí, o autor investiga os diversos discursos sobre a sustentabilidade urbana e identifica matrizes discursivas de representação de forma a tornar claro o que está sendo disputado, quais são as visões de futuro de cidade em disputa, o que se fazer durar, para quê e para quem, tornando transparentes as diferentes propostas políticas existentes por trás dos rótulos meio ambiente e sustentabilidade. São três as matrizes discursivas de sustentabilidade urbana identificadas pelo autor. A primeira, representação tecno-material da cidade, combina modelos de racionalidade energética com modelos de equilíbrio metabólico e reduz a sustentabilidade urbana a seu aspecto estritamente material. A segunda, representação da cidade como espaço da qualidade de vida, combina modelos de pureza, de cidadania e de patrimônio e remete a sustentabilidade a um processo de construção de direitos que possam equacionar as externalidades negativas responsáveis pela insustentabilidade urbana. A terceira matriz, centrada na reconstituição da legitimidade das políticas urbanas, combina modelos de eficiência e equidade, além de remeter a sustentabilidade à construção de pactos políticos capazes de reproduzir suas próprias condições de legitimidade.


Compreender que a sustentabilidade urbana é antes uma idéia em construção e disputa que uma definição acabada, é fundamental para compreender o papel no estabelecimento de sua “verdade” dos esforços em torná-la mais operacional e mensurável, como a criação de indicadores. Portanto, é necessário explicitar aqui o que se entende por sustentabilidade ambiental.

Eximimos-nos, contudo, de efetuar comparações entre o conteúdo aqui atribuído à idéia de sustentabilidade urbana e outras definições importantes no estabelecimento da “verdade” sobre o tema –como as provenientes da Agenda 21 (United Nations, 1992), do Habitat I (UNCHS, 1988), dentre outras– uma vez que esta se tornaria por demais extensa no contexto deste artigo.


Optamos por utilizar, dentre os vários conteúdos atribuidos à idéia de sustentabilidade urbana, uma que estivesse em consonância com a terceira das matrizes discursivas de sustentabilidade urbana identificadas por Acselrad (1999). Nossa escolha recaiu sobre a definição do Urban World Forum (2002), que define sustentabilidade urbana a partir do estabelecimento de um conjunto de prioridades, são elas: superar a pobreza, promover equidade, melhorar a segurança ambiental e prevenir a degradação, estar atento à vitalidade cultural e ao capital social para fortalecer a cidadania e promover o engajamento cívico.


A esta definição adicionamos as observações feitas pro McGranahan e Satterthwaite (2002) e Miller e Small (2003) de que para ser considerada sustentável, não é suficiente que uma cidade confira a seus habitantes condições ambientais equilibradas, mas que o faça sem gerar externalidades negativas para outras regiões (próximas ou distantes) e para as gerações futuras. Isso implica em levar em conta não apenas a escala local, ou intra-urbana, da sustentabilidade, mas também considerar a escala regional, constituída pela cidade e suas relações com o entorno, e a escala global, constituída pelos seus impactos sobre os problemas ambientais globais, como o efeito estufa, e por questões relativas aos impactos agregados da rede mundial de grandes cidades sobre o planeta.

Apesar dos esforços recentes empreendidos na sistematização de informações para a gestão ambiental urbana em cidades de diversos países e regiões, o desafio de lidar com a carência de informações sistematizadas sobre a questão ambiental urbana ainda é de grande monta. Não é por outra razão que grande parte das decisões tomadas por órgãos públicos, na área ambiental, se dá a partir de informações imprecisas que tornam-se “certezas” fragilmente construídas.


Da necessidade de provisão de informação de qualidade para guiar a tomada de decisões relativas à sustentabilidade, surgiram desde o final da década dos 80, várias iniciativas de construção de índices e indicadores, a maior parte delas aplicadas à escala nacional. Tais iniciativas possuíam em comum o objetivo de fornecer subsídios à formulação de políticas, bem como monitorar o progresso no cumprimento de acordos internacionais e orientar a tomada de decisão por atores públicos e privados. No seu conteúdo procuram descrever e mensurar a interação entre a atividade antrópica e o meio ambiente, conferindo à idéia de sustentabilidade maior operacionalidade e funcionalidade.


Em geral, tais iniciativas tomam por base o modelo de pressão-estado-resposta (OECD, 1994), ou sua variante força motora-estado-resposta (United Nations, 2001). Neste modelo, os indicadores de estado buscam descrever a situação presente, física ou biológica, dos sistemas naturais. Os indicadores de pressão, ou força motora, tentam avaliar e medir as pressões exercidas pelas atividades antrópicas sobre os sistemas naturais ou as forças motoras que geram tais pressões, respectivamente. Os chamados indicadores de resposta procuram avaliar a qualidade das políticas e acordos formulados para responder, ou seja, minimizar os impactos antrópicos.


Um marco dentre tais iniciativas foi a criação pela Comissão de Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas de um Grupo de Trabalho de Indicadores de Desenvolvimento Sustentável. O objetivo de tal comissão foi construir indicadores acessíveis aos tomadores de decisão que pudessem auxiliar os países nos seus esforços de medir o progresso rumo ao desenvolvimento sustentável. A metodologia básica proposta evoluiu de uma abordagem força motora-estado-resposta para uma abordagem baseada em temas e sub-temas de desenvolvimento sustentável a partir da experiência acumulada nos testes e nas avaliações por experts. Alguns países participantes da etapa de testes concluíram que a abordagem força motora-estado-resposta, embora adequada para a dimensão ambiental, não se mostrou adequada para as dimensões social, econômica e institucional do desenvolvimento sustentável (United Nations, 2001).


Outra iniciativa digna de nota, esta mais específica em relação ao urbano e à escala local, é a do Programa de Indicadores Urbanos do Habitat, tem por objetivo servir de base para o estabelecimento de uma Rede Mundial de Observatórios Urbanos, bem como para a avaliação e controle da implementação dos programas do Habitat e da Agenda 21. A iniciativa contempla indicadores relativos a cinco temas: abrigo (shelter); desenvolvimento social e erradicação da pobreza; gestão ambiental; desenvolvimento econômico; governança (UNCHS, 2004).


Na América Latina, uma iniciativa nesse sentido foi a criação pela CEPAL da Rede de Indicadores de Desenvolvimento Sustentável, como o objetivo de apoiar os países latino americanos nos processos de construção e implementação de indicadores de desenvolvimento, promovendo também intercâmbio e troca de experiências.


Entretanto, tal iniciativa ainda é insipiente. No Brasil, destaca-se a iniciativa Indicadores de Desenvolvimento Sustentável-Brasil 2004, do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), que calcula indicadores de sustentabilidade nas dimensões ambiental, social, econômica e institucional para os estados da federação (IBGE, 2004).


Recentemente, em junho de 2006, o Banco Mundial anunciou durante o III Urban Fórum, uma proposta de facilitar o desenvolvimento de indicadores urbanos padronizados com uma forte dimensão de sustentabilidade. Nos dois primeiros anos do projeto serão construídos indicadores em parcerias com 5 cidades-piloto: Belo Horizonte e São Paulo, no Brasil, Bogotá na Colômbia e Toronto e Vancouver no Canadá.


A consolidação de índices sintéticos como medida de desenvolvimento econômico e social, como o Produto Interno Bruto (PIB) e o Índice de Desenvolvimento Humano (IDHM), impõe a construção de medidas de sustentabilidade que possam dialogar com esses indicadores historicamente consagrados. Desta forma, os índices de sustentabilidade em geral, e os índices de sustentabilidade urbana em particular, podem ser considerados como parte de uma quarta geração, em construção, dos índices de desenvolvimento2 .


Dentre as dificuldades metodológicas comuns na construção de indicadores de sustentabilidade, urbanos ou não, destacam-se a formulação conceitual apropriada, a tradução operacional em variáveis, a obtenção de dados fidedignos e o seu tratamento estatístico adequado. Dada a inexistência de consenso em relação aos conceitos de sustentabilidade e de qualidade ambiental, o processo de escolha das variáveis a serem utilizadas na suas mensurações acaba, muitas vezes, sendo mais uma função da disponibilidade de dados do que uma decorrência do conceito, o que compromete o rigor teórico das relações de causalidade encontradas entre os diferentes indicadores. A carência de informações sistemáticas tem sido um problema recorrente para todos aqueles que trabalham com indicadores ambientais e de sustentabilidade (Environmental Sustainability Indicators, 2002; Esty e Porter, 2002; United Nations, 2001; Herculano, 1998; Isla, 1998).
Fonte: http://www.scielo.cl/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0250-71612006000200004